Como se fiscaliza a venda de bebidas alcoólicas no país

Bebidas falsificadas apreendidas em operação da Polícia Civil

Bebidas falsificadas apreendidas em operação da Polícia Civil

Os casos de intoxicação por metanol no Brasil subiram para 59 no fim da tarde de quinta-feira (2), segundo balanço do Ministério da Saúde. São 53 casos em São Paulo e cinco em investigação em Pernambuco, além de um no Distrito Federal. O rapper Hungria foi internado em Brasília, e houve confirmação de que os sintomas têm a ver com o metanol. 

O metanol é um tipo de álcool semelhante ao etanol, que compõe algumas bebidas alcoólicas. Sua ingestão pode causar envenenamento do organismo. O Ministério da Justiça e Segurança Pública classificou os casos recentes de intoxicação como “surto epidêmico”.

Neste texto, o Nexo mostra a presença do mercado de bebidas alcoólicas adulteradas no país e explica quem são os responsáveis pela fiscalização. 

A onda de intoxicação 

Os primeiros casos de intoxicação por metanol começaram a aparecer no dia 22 de setembro em hospitais de São Paulo e deixaram os médicos em alerta por causa do perfil dos pacientes, conforme disse o produtor da TV Globo, Carlos Henrique Dias, ao podcast O Assunto. 

Intoxicações por metanol ocorrem geralmente com pessoas em situação de rua, que acabam consumindo o produto usado na produção de itens industriais e domésticos — como produtos de limpeza e combustível —, segundo os médicos. Chamou a atenção a mudança no perfil dos pacientes. 

Os profissionais começaram a atender pessoas que haviam comprado garrafas de vodca ou gim em adegas de diferentes regiões de São Paulo para consumir com amigos. Um desses jovens está em coma, e seu estado de saúde é irreversível. 

Há ainda o caso de uma mulher que ingeriu três caipirinhas de frutas vermelhas num bar de uma região nobre da capital paulista ao comemorar o aniversário de uma amiga. Poucas horas depois, ela se sentiu mal e foi levada ao hospital pela família. Ela segue hospitalizada e perdeu a visão. 

Na quarta-feira (1°), seis estabelecimentos foram fechados no estado de São Paulo por suspeita de comercializarem bebidas adulteradas. Na capital, os locais ficavam nos bairros Bela Vista, Itaim Bibi, Jardins e Mooca. Outros dois comércios ficavam nas cidades de Barueri e São Bernardo do Campo, na região metropolitana. 

O tamanho da falsificação 

A explosão de casos de intoxicação por metanol trouxe à tona o perigo da atuação do mercado ilegal de bebidas alcoólicas no país.  

De acordo com o estudo “Follow the Products – Rastreamento de produtos e enfrentamento ao crime organizado no Brasil”, publicado em fevereiro pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, as atividades ilegais desse mercado no Brasil envolvem diversas práticas, divididas em quatro eixos principais: 

Entre essas ações, a falsificação é a mais recorrente, com a reutilização de garrafas para envasar bebidas adulteradas, numa prática conhecida como “refil”, segundo a publicação. É aí que os produtos são “batizados” com metanol para ficarem mais baratos. 

R$ 56,9 bilhões

foi o dinheiro movimentado pelo mercado ilegal de bebidas em 2023, segundo estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública 

Ainda de acordo com o estudo, as atividades ilegais no setor de bebidas alcoólicas são dominadas por organizações criminosas, como as facções PCC (Primeiro Comando da Capital) e CV (Comando Vermelho), cuja infiltração também cresce dentro da economia formal brasileira. No Rio de Janeiro, as milícias têm se envolvido no comércio ilegal de bebidas. 

Em 2023, a Operação Afluência, da Polícia Federal, desarticulou uma organização criminosa que trabalhava com o descaminho de bebidas de origem estrangeira. O foco ocorre em algumas regiões brasileiras: vinhos são contrabandeados pelo Rio Grande do Sul, enquanto destilados costumam chegar pelo Paraná e Mato Grosso do Sul, que fazem fronteira com o Paraguai. 

Vinhos para venda em supermercado

Vinhos para venda em supermercado

Outro estudo publicado em abril pela Fhoresp (Federação de Hotéis, Bares e Restaurantes do Estado de São Paulo), que mediu os impactos econômicos de golpes e estelionato no setor, afirma que 36% do volume total de bebidas comercializadas no país pode ser ilegal – perde apenas para o tabaco. 

Conforme explicou ao Nexo Enio Miranda, diretor de Planejamento Estratégico e Governança Corporativa da Fhoresp, a produção de bebidas falsas ocorre em pequenas indústrias ilegais — sem seguir nenhuma norma fiscal, econômica ou de vigilância sanitária —, mas com capacidade tecnológica de produzir embalagens idênticas e muito parecidas com as originais. 

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garrafas de vodca vendidas no Brasil são falsificadas, segundo estudo da Fhoresp

“Existem também pequenos distribuidores coniventes com isso, que oferecem preços muito vantajosos para estabelecimentos, muitas vezes com nota fiscal fria [emitida sem uma venda real acontecer]. E aí essas bebidas geralmente vão para estabelecimentos menos preparados, ou que buscam essa vantagem incorretamente”, disse Miranda. 

De acordo com o estudo da federação, um dos fatores que incentivam a prática de adulteração de bebidas alcoólicas é a carga tributária. 

“A carga tributária no Brasil sobre esse tipo de produto pode superar 60% do preço final de venda. Ou seja, é um produto que sai caro. Mercadoria que não paga nenhum imposto pode chegar a 60% menos. Esse é o motivo da proliferação do mercado da pirataria e da falsificação de produtos no país”, afirmou. 

Quem fiscaliza 

A fiscalização de bebidas alcoólicas se dá em várias frentes, segundo Miranda. 

Um dos órgãos envolvidos nessa atividade é a Vigilância Sanitária, responsável por regulamentar padrões e garantir a segurança dos produtos que são vendidos. 

Há ainda o papel das forças de segurança pública, como a Polícia Civil e a Polícia Federal, que são responsáveis por investigações e têm o poder de fechar fábricas clandestinas e criminalizar os responsáveis. Na terça-feira (30), o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, disse que a PF abriu inquérito para investigar os casos de intoxicação por metanol em São Paulo. 

224%

foi o percentual de aumento do valor movimentado pelo mercado ilegal de bebidas em 2023 em comparação a 2017, segundo estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública 

A principal frente de fiscalização é a fiscal, segundo Miranda. “O importante é descobrir a origem da prática ilícita e a cadeia econômica desse processo envolvendo a pirataria de notas frias e falsas”, disse. 

Tanto Miranda quanto o estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública afirmam que o fim do antigo Sicobe (Sistema de Controle de Distribuição de Bebidas) causou prejuízo para essa fiscalização. O órgão, comandado pela Receita Federal e pela Casa da Moeda, foi criado em 2008 para o controle fiscal de cervejas, refrigerantes e águas, mas foi desativado em 2016 sob a justificativa de custo elevado. 

“Esse sistema emitia os selos dos lacres das bebidas alcoólicas. Como isso não existe mais desde 2016, começou, a partir desse ano,  a proliferar esse tipo de pirataria no Brasil. É necessário retomar esse sistema para rastreamento da origem dos produtos”, afirmou Miranda. 

O Fórum Brasileiro de Segurança Pública ressaltou que a extinção do Sicobe tornou o monitoramento da produção “mais fragmentado, difícil e falho”. Como resultado, houve impacto significativo na arrecadação e no mercado formal, que perde terreno para o mercado ilegal e “alimenta o poderio econômico das organizações criminosas”. 

“A produção ilegal ou subdeclarada de bebidas, invisibilizada ao Estado pela ausência de instrumentos de controle e rastreamento adequados, configura um nó górdio, que é fato gerador e força motriz para as fraudes e crimes”

Fórum Brasileiro de Segurança Pública

em trecho de estudo sobre o tema

Em agosto de 2024, o TCU (Tribunal de Contas da União) determinou a reativação do Sicobe, mas a Receita Federal aguarda uma decisão do Supremo Tribunal Federal para religar o sistema. Em nota, o órgão do Ministério da Fazenda disse que não há correlação entre bebidas adulteradas com metanol e a desativação do Sicobe. 

“É importante lembrar que o Sicobe não avaliava a qualidade das bebidas, apenas media o volume produzido”, afirmou a Receita na nota

Cuidados e responsabilização

Mesmo que a adulteração não ocorra em todas as etapas da cadeia de produção de bebidas, a responsabilização judicial é compartilhada entre fabricantes, distribuidores e pontos de venda quando uma pessoa consume bebida adulterada. 

Isso ocorre independentemente de quem foi o causador direto da contaminação por metanol, disse o advogado Fernando Moreira, especialista em direito societário, governança e compliance, ao portal Jota. 

Já a responsabilidade penal das distribuidoras e fabricantes depende da comprovação de vínculo com a adulteração do produto. Se ela ocorre fora da cadeia oficial, as empresas ficam isentas. Mas, se há participação das companhias na prática ilícita, elas podem responder por crimes contra a saúde pública e até por homicídio — seis mortes já foram confirmadas em São Paulo por intoxicação por metanol. 

Miranda afirma que há alguns cuidados a serem tomados pelos consumidores: 

A Fhoresp também emitiu orientações aos empresários sobre como proceder na compra, verificação e checagem dos produtos que compram para usar em seus estabelecimentos. As recomendações passam pela validade de notas fiscais até a conferência dos lotes. “É muito importante lembrar que tanto consumidores quanto empresários são vítimas de uma falsificação que já é estrutural no país”, afirmou Miranda.