Há alguns dias, uma mensagem enviada a uma cientista colaboradora voltou com uma resposta automática dizendo que ela estava afastada por tempo indeterminado devido à falta de recursos federais. A pesquisadora, que atua em um dos centros intramurais do NIH (National Institutes of Health) norte-americano, está tecnicamente impedida de trabalhar devido ao bloqueio orçamentário em curso nos EUA. Não é o primeiro prejuízo a colaborações que a pesquisa no NIH sofreu por conta da política de Donald Trump: desde o começo do ano o presidente americano tem implementado dificuldades para colaboradores internacionais, desde atravancar a obtenção de vistos até proibir a contratação de pesquisadores com salários ou bolsas internacionais, sob o absurdo argumento de que essa seria uma “interferência internacional” na pesquisa do NIH. Digo absurdo argumento porque não há pesquisa que não seja colaborativa e internacional – a atividade requer especialistas trabalhando em redes para além das fronteiras.
Os problemas de pesquisa ligados às políticas trumpistas que interferem no NIH não são limitados aos seus centros físicos. O NIH oferece financiamento para pesquisa biomédica fora desses espaços, em universidades e centros de pesquisa norte-americanos predominantemente, mas também em outros lugares do mundo. Trump está intervindo nesse financiamento de várias maneiras. Uma é obrigar universidades a assinar contratos prometendo seguir suas linhas de pensamento político como moeda de troca para receber recursos federais para pesquisa, tornando assim a atividade de cientistas refém de processos burocráticos, jurídicos e contrários à liberdade de pensamento que a criação exige. Outra é cortar componentes internacionais, numa tentativa de nacionalizar o conhecimento científico, embora este seja amplamente reconhecido como um bem de toda a humanidade.
Nunca antes me ocorreu que o país líder em pesquisa poderia ser presidido por alguém que se posiciona abertamente contra aquilo que faz dele uma superpotência
Preocupantemente, o acesso à informação científica mundial já está prejudicado pelo bloqueio orçamentário dos EUA, que afeta o funcionamento e a atualização do NCBI (National Center for Biotechnology Information), biblioteca virtual que é usada por cientistas de todo mundo para obter informação científica biomédica. Como maior agência mundial na área, o NIH supervisiona as atividades desse recurso inestimável. Confesso que nunca antes me ocorreu que seu acesso poderia ser prejudicado por uma política anticientífica nos EUA, porque nunca antes me ocorreu que o país líder em pesquisa poderia ser presidido por alguém que se posiciona abertamente contra aquilo que faz dele uma superpotência: sua capacidade de gerar conhecimento e desenvolvimento.
Não contente em prejudicar investimentos em ciência que trarão desenvolvimento a longo prazo, o governo Trump faz questão de causar uma crise de confiança na ciência atual. Indicou como secretário de saúde RFK Jr., pessoa que não tem formação científica ou na área de saúde, mas ligação com a lucrativa indústria da desinformação. RFK Jr. já começou a semear anticientificismos da pior maneira possível, incluindo a sugestão de adiar ou separar a aplicação de vacinas de forma não indicada pelas associações médicas de responsabilidade, por não ser respaldada em dados científicos. A falta de coerência entre agências produz confusão e medo na população, aumentando a força das pseudociências não somente nos EUA, mas mundialmente.
Para piorar, RFK Jr. agora instalou uma crise de credibilidade no próprio processo científico ao proclamar como ele acredita que este deve ocorrer, num mecanismo que difere muito de sua prática real. Anunciou em abril que iria descobrir a causa do autismo, como se houvesse causa única e se fosse possível descobri-la por decreto. Em setembro, lançou uma teoria bizarra e nada apoiada em fatos de que o transtorno seria causado por um antitérmico comum, e disse que iria subsequentemente produzir a ciência para provar isso. Ciência simplesmente não funciona assim – procuramos evidências não para provar declarações, mas para nos mostrar a realidade, seja ela a favor ou contra uma hipótese científica inicial formulada. Ao fazer tal anúncio, RFK Jr. e Trump criam um movimento preocupante, pois certamente aparecerão pessoas que dirão ter tomado o medicamento antes de ter filhos com autismo – é uma simples questão estatística, que confunde correlações individuais com causalidade. O processo todo adiciona novos elementos à diminuição de credibilidade da população sobre o método científico, herança que carregaremos por muito tempo.
Mas talvez o pior efeito do anticientificismo de Trump seja ter rebaixado drasticamente a base de comparação para a confiança e os investimentos em ciência por parte de outros países, fazendo qualquer coisa parecer melhor, portanto “aceitável”. No Brasil, saímos do inaceitável governo Bolsonaro, extremamente agressivo com os cientistas e suas atividades, para o governo Lula, que certamente é melhor. Porém, no retorno a um governo que diz agir de forma baseada em evidências, faltam ações mais contundentes que realmente tragam progressos significativos. Um exemplo é a situação das vacinas no Brasil, que apresentou melhoras, mas ainda sofre de problemas de acesso e confiança, que são muito doloridos de se ver em um país que antes era exemplo global de vacinação pública. Outro é o fato de que a atividade científica no Brasil continua sendo muito mal financiada apesar do discurso governamental mais favorável, resultando no oferecimento de oportunidades extremamente limitadas a jovens pesquisadores e levando ao risco de um “apagão científico”.
O caminho para o desenvolvimento econômico por meio de investimentos em conhecimento é certeiro, mas, como reconhecido pelo Nobel em economia este ano, exige entendimento de mecanismos científicos. Isso demanda tempo para além de governos individuais. Assim como correr uma maratona, gerar conhecimento exige foco, investimento, planejamento, preparo, previsibilidade e constância. Nós, brasileiros, sabemos bem como é fácil destruir progressos na área, e dificílimo reconstruí-los. Estamos agora, assustadoramente, vendo o maior gerador internacional de ciência seguir um caminho de destruição do progresso científico que vai abalar os alicerces do conhecimento de todo mundo por décadas. Precisamos manter a esperança de que a base internacional do conhecimento científico atual se mantenha forte o suficiente para nos sustentar até esta crise passar, e trabalhar para que o processo de criação de conhecimento se torne cada vez mais global, diverso, disseminado e independente de iniciativas governamentais isoladas.