
Caixa de cigarros
A OMS (Organização Mundial da Saúde) defende a adoção de critérios mais restritivos para publicidade de produtos nocivos à saúde como uma das medidas para conter o avanço de doenças crônicas não transmissíveis.
No Brasil, a discussão mais recente coloca na mira os alimentos e bebidas de baixo valor nutritivo. Em agosto, o Supremo Tribunal Federal ouviu diferentes setores numa audiência sobre o papel da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) na regulação da publicidade desses produtos. Além deles, pesquisadores defendem a atualização de critérios mais rígidos para propagandas de bebidas alcoólicas e tabaco.
Neste texto, o Nexo conta em que pé estão as normas já existentes e qual a importância da regulamentação.
A publicidade do tabaco teve um boom no início do século 20 a partir da fabricação de produtos em escala industrial – especialmente após a Primeira Guerra. No início, as marcas focaram no público masculino, mas logo ampliaram o alvo para as mulheres.
As propagandas, impressas e transmitidas via rádio e televisão, relacionavam o consumo de cigarros a padrões de comportamento e estilo em detrimento dos efeitos nocivos à saúde. Era comum vincular o ato de fumar a simbologias de sucesso, poder e desejo – o que incluía a presença de personalidades da música e do cinema nas campanhas.
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“A publicidade do tabaco buscou, por muitos anos, associar seu produto com sucesso pessoal, profissional, esportivo e sexual, com glamour e com inteligência”, afirmou o médico Luiz Carlos Romero em consultoria ao Senado Federal em 2000.
Algo semelhante ocorreu com as bebidas alcoólicas. Por anos, o ato de beber foi apresentado como uma ação de glamour e conferir “status social” ao consumidor. Em algumas peças com caráter mais popular, produtos como cervejas foram associados a grandes símbolos da cultura nacional – como o samba e o futebol. Isto é: criou-se a ideia de que onde há esses eventos, não pode faltar bebidas.
Tanto na publicidade de cigarros quanto de bebidas alcoólicas, as mulheres ganharam espaço ao longo dos anos ao passo que a pauta do empoderamento feminino ganhou força, como explicou a pesquisadora do departamento de nutrição da USP (Universidade de São Paulo) Adélcia Almeida. Antes desse direcionamento, via de regra, elas apareciam de forma objetificada e associadas à ideia de algo a ser desejado – assim como os produtos.

Propaganda de vinho de 1898
“Eles pegam características desejáveis pelo público feminino e colocam na publicidade, para que as mulheres, ao verem certos anúncios, se identifiquem e falem: ‘realmente, esse produto vai satisfazer minhas necessidades’”, afirmou ao jornal da universidade em abril de 2025.
Segundo Almeida, a tática é repetida no setor de ultraprocessados. Compensar a falta de tempo e a necessidade imposta de cuidar da casa e da família com soluções mais práticas é um dos motes relacionados para atrair o público feminino. “Se ela está cansada, o marido ou os filhos não ajudam, você vai e apresenta um anúncio que tem uma embalagem de produto já pronto só para esquentar no micro-ondas”, exemplificou a pesquisadora da USP.
A publicidade de ultraprocessados abarca com ainda mais força crianças e adolescentes, mascarando os efeitos nocivos de alimentos de baixo teor nutricional com recursos visuais lúdicos e chamativos. Parte dos produtos voltados ao público infantil ainda relaciona alimentos com personagens animados em suas embalagens.
O tabaco foi um dos primeiros produtos nocivos à saúde a receber restrições mais diretas para publicidade. Além da restrição prevista na Constituição de 1988 (em seu artigo 220, que determina a exibição de advertência sobre malefícios decorrentes do uso), uma lei de 1996 propôs requisitos às propagandas.
Antes, o texto previa uma faixa de horário em que a veiculação fosse permitida e proibia de uso de trajes esportivos olímpicos por atores e personalidades nas propagandas.
Na época, países como Finlândia, Canadá e Nova Zelândia eram citados por pesquisadores como exemplos na redução de consumo de cigarros após a imposição de proibições na publicidade.

Cigarro aceso em um cinzeiro
Na via contrária, empresas argumentaram que a medida restringia o direito à liberdade de expressão e comércio. Segundo Romero, na consultoria aos legisladores em 2000, os argumentos fizeram com que a legislação fosse mais branda do que o esperado e impediram o banimento total desse tipo de publicidade.
Em 2011, a norma – conhecida como Lei Antifumo – foi ajustada para vedar a propaganda comercial de cigarros em todo o país (com exceção da exposição nos pontos de venda). Naquele ano, de acordo com o Ministério da Saúde, 14,8% da população era fumante. Em 2021, esse percentual caiu para 9,1% e atingiu o menor índice.
Mas desde 2022, o número de fumantes voltou a crescer. Pesquisadores já alertam para estratégias de marketing da indústria para atrair principalmente jovens com tecnologias como os cigarros eletrônicos, conhecidos como vapes. Em outubro de 2025, a OMS fez um alerta global para que as normas de proibição da publicidade sobre tabaco sejam atualizadas.
11,3%
da população brasileira era fumante em 2024, segundo o Ministério da Saúde
Além do tabaco, as bebidas alcoólicas foram contempladas pela norma de 1996 (Lei Antifumo). No entanto, o texto restringe a publicidade apenas de bebidas com teor alcoólico maior que 13% – como a maior parte das vodkas e cachaças.
“A maior parte das cervejas tem no máximo 5%. A regra não se aplica justamente ao produto que detém 90% do mercado”, afirmou a campanha “Cerveja também é álcool” da ACT Promoção da Saúde em agosto. Na ocasião, a entidade defendeu a isonomia entre as bebidas alcoólicas para restrição completa de publicidade e a aprovação do PL 2.502/23 no Senado – que propõe a alteração da Lei Antifumo para endurecer regras sobre propagandas de produtos. O projeto aguarda redistribuição em comissão da Casa desde março de 2025.
“Permitir a publicidade de bebidas com menor teor alcoólico pode reforçar a falsa ideia de que existe um ‘álcool aceitável’ e outro ‘não aceitável’”
ACT Promoção da Saúde
em campanha em agosto de 2025
Em 2014, a resolução 163 do Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente) estabeleceu critérios para considerar peças de publicidade infantil abusivas. Na prática, a norma proibiu de forma geral a veiculação de propagandas com:
O texto não fala sobre publicidade de produtos específicos, como os ultraprocessados. Antes, em 2010, a Anvisa editou uma norma específica para isso. A resolução 24/2010 da agência determina a inclusão de alertas de risco de consumo excessivo em peças publicitárias de alimentos e bebidas de baixo valor nutricional. Ela não proibiu ou impediu a veiculação da publicidade.
O texto nunca entrou, de fato, em vigor por ser alvo de ações judiciais que questionam sua viabilidade e a competência da Anvisa diante da ausência de lei federal. A mais recente foi protocolada no STF em fevereiro de 2025 pela Abert (Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão) sob o argumento de que as determinações ferem a livre concorrência e a liberdade de expressão.

Seção de salgadinhos em supermercado
Em agosto de 2025, uma audiência pública no Supremo ouviu diferentes setores sobre o assunto. A ação aguarda manifestação do ministro Cristiano Zanin, relator.
Na avaliação da pesquisadora Patrícia Jaime, do Nupens (Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde) da USP, o maior desafio para regular o tema é o lobby da indústria de ultraprocessados e do agronegócio – segundo ela, “nítido durante todo o processo de votação da reforma tributária”, outra medida vista como oportunidade para frear o consumo de produtos nocivos à saúde.
“São multinacionais que disputam narrativas e investem em marketing para induzir ao consumo de ultraprocessados”
Patrícia Jaime
pesquisadora do Nupens (Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde) da USP, em entrevista ao site O Joio e o Trigo em novembro de 2024
A pesquisadora acrescentou que o cenário ideal inclui a proibição da publicidade de ultraprocessados voltados ao público infantil e a ampliação das políticas de rotulagem – com alertas sobre os efeitos nocivos dos produtos aos consumidores.
Uma pesquisa apresentada em maio de 2025, coordenada pela professora Emma Boyland, da Universidade de Liverpool, na Inglaterra, apontou que a exposição de crianças de 7 a 15 anos por cinco minutos à publicidade de fast food incentiva a ingestão de mais calorias ao longo do dia.
“O estudo comparou os diferentes tipos de mídia: audiovisual, televisão, postagens nas redes sociais, áudio, como os podcasts, e estáticos, como os outdoors. Foi possível concluir que o efeito sobre a alimentação foi similar”, concluíram os pesquisadores.
A série especial “Tributação e saúde: o que está em jogo?” conta com o apoio da ACT Promoção da Saúde, uma organização não governamental que atua na promoção e na defesa de políticas de saúde pública, com destaque para as áreas de controle do tabaco, alimentação saudável, controle do álcool e promoção da atividade física.