A Amazônia será, em 2025, o epicentro das decisões climáticas globais. A realização da COP30 em Belém do Pará, em novembro deste ano, é uma oportunidade histórica para o Brasil — e para o mundo — de recolocar o debate climático sobre bases democráticas e populares. Mas há um alerta urgente: sem a participação efetiva da sociedade civil, a conferência corre o risco de repetir o roteiro das promessas vazias e dos acordos que priorizam o mercado, não as pessoas.
Desde agosto de 2023, mais de 1.000 movimentos e organizações populares vêm construindo coletivamente a Cúpula dos Povos rumo à COP30, um processo de convergência que mobiliza mulheres, povos indígenas, comunidades quilombolas, juventudes, sindicatos, coletivos culturais, movimentos urbanos e rurais. Essa articulação nasce com um propósito claro: garantir que as vozes historicamente silenciadas — aquelas que vivem nas florestas, nas periferias e nos territórios mais afetados pela crise climática — ocupem o centro do debate sobre o futuro do planeta.
A cúpula não é um evento paralelo; é uma resposta política à forma como as COPs têm sido conduzidas nas últimas décadas. Longe dos corredores corporativos e das negociações opacas entre governos e grandes empresas, o espaço popular reivindica um novo paradigma: um clima de justiça só é possível com democracia e participação social.
Sem o povo, não há justiça climática possível
O desafio é imenso. A crise climática, agravada pela financeirização da natureza e pelo poder crescente das corporações transnacionais, tem aprofundado as desigualdades e violado os direitos humanos. O avanço de falsas soluções — como o mercado de carbono e os mecanismos de compensação que perpetuam a poluição — tem transformado o que deveria ser um esforço coletivo em uma nova fronteira de negócios. Enquanto isso, os impactos se acumulam: secas prolongadas, enchentes, deslizamentos e a destruição de modos de vida inteiros.
É nesse contexto que a democratização do financiamento climático se torna um tema central. Segundo o Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos), o financiamento climático global ainda é dominado por fluxos privados, empréstimos e mecanismos de endividamento que reproduzem a dependência econômica dos países do Sul Global. Grande parte dos recursos destinados ao clima não chega aos territórios que mais precisam de apoio — e, quando chega, vem condicionada a lógicas de mercado, sem controle social e sem transparência.
O Inesc defende que o financiamento climático deve ser público, justo e acessível. Isso significa garantir que o dinheiro mobilizado para enfrentar a crise venha de fontes públicas, não de novos endividamentos; que seja destinado prioritariamente às populações vulneráveis e aos territórios impactados; e que os processos de decisão sobre o uso desses recursos envolvam participação popular e mecanismos de controle democrático.
O clima não pode ser tratado como ativo financeiro. As mudanças climáticas são resultado direto de um modelo econômico extrativista, patriarcal e racista — e enfrentá-las exige romper com essa lógica. Financiamento público e políticas de transição justa só farão sentido se forem guiadas por princípios de reparação histórica, soberania popular e solidariedade internacional.
É exatamente isso que a Cúpula dos Povos propõe. Estruturada em seis eixos — que incluem a defesa dos territórios e maretórios vivos, a reparação histórica e o combate ao racismo ambiental, a transição justa e inclusiva, a luta contra as opressões, a construção de cidades justas e o feminismo popular —, a iniciativa reafirma que a crise climática é também uma crise da democracia. E que, sem povo, não há justiça climática possível.
A participação social é mais do que um direito: é uma condição para que as decisões tomadas nas instâncias globais tenham legitimidade e eficácia. Quando a sociedade civil é excluída, abre-se espaço para soluções tecnocráticas, distantes da realidade e incapazes de transformar estruturas. Quando participa, o povo revela o que realmente está em jogo — a vida, o território, a cultura, o cuidado e o futuro comum.
O Brasil, que será o anfitrião da COP30, tem diante de si uma responsabilidade histórica. Ser referência global na agenda climática não se resume a sediar uma conferência. É preciso liderar pelo exemplo, adotando políticas de transição energética justa, descarbonização, combate ao desmatamento e fortalecimento de mecanismos de governança participativa. Significa também enfrentar o poder corporativo que captura o debate climático e garantir que os recursos públicos cheguem às comunidades que fazem, na prática, a defesa do planeta.
A Cúpula dos Povos rumo à COP30 é um chamado à ação. Convoca redes, movimentos e organizações de todo o mundo a se unirem em torno de uma agenda que recoloque a democracia no centro da política climática. Porque enfrentar a crise do clima não é apenas uma questão técnica — é, antes de tudo, uma disputa por poder, justiça e sentido de humanidade.
A Amazônia, símbolo maior da resistência e da vida, será também o palco onde se decidirá o rumo dessa disputa. Que a COP30 seja lembrada não pelas promessas de compensação ou pelos compromissos de mercado, mas por ter sido o momento em que o povo se fez ouvir. E que o mundo compreenda, de uma vez por todas: não há transição justa sem participação popular, nem justiça climática sem democracia.
José Antônio Moroni é filósofo, com pós-graduação em história do Brasil, fundamentos em educação especial e métodos e técnicas de elaboração de projetos sociais. Atua há mais de 40 anos em organizações não governamentais e movimentos populares, especialmente na área dos direitos humanos, participação e democracia. Acompanhou a elaboração de diversas leis, com destaque para o Estatuto da Criança e do Adolescente e a Lei Orgânica de Assistência Social. Integra o colegiado de gestão do Inesc e representa a instituição em fóruns nacionais e internacionais.
Este artigo de opinião faz parte da série de Debate “Financiamento climático: quem deve pagar essa conta?”, produzido com o apoio do Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos), uma organização não-governamental, sem fins lucrativos, não-partidária, cuja missão é contribuir para o aprimoramento dos processos democráticos visando à garantia dos direitos humanos, mediante o diálogo com o cidadão e a cidadã, a articulação e o fortalecimento da sociedade civil para influenciar os espaços de governança nacional e internacional e a sociedade.